Estudo mostra que política de desencarceramento é impactada por falta de informações e questões de gênero
As questões de gênero afetam as mulheres nas mais variadas situações, inclusive, no acesso a direitos e decisões e acordos como no cumprimento da política de desencarceramento, o Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP, que propunha prisão domiciliar às gestantes e mães com filhos de até 12 anos de idade ou deficientes. O desconhecimento de dados sobre a população feminina carcerária e a dupla condenação recebida por mulheres que cometem crimes – pelo que praticaram e em função do gênero -, foram identificadas na análise de 177 processos referentes a 190 mães encarceradas na Penitenciária Feminina de Piraquara.
O resultado desse trabalho integra uma pesquisa desenvolvida junto ao Centro de Pesquisa Jurídica e Social (CPJUS) da Universidade Positivo (UP), com 11 pesquisadores, coordenados pelas professoras Maria Tereza Uille e Olívia Pessoa. Da análise das informações obtidas, constatou-se que o Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP foi insuficiente para promover o desencarceramento de mães e gestantes e que muitos dados relacionados à gestação e maternidade não são informados ao longo dos autos processuais, dificultando a visibilidade e o cumprimento dos direitos destas mulheres. Prova disso é que em 31% dos processos não há informações nem sobre essas mulheres terem ou não filhos. “Se não tem essa informação, como o Estado se responsabiliza por essa criança que teve a mãe aprisionada?”, questiona a professora Olívia Pessoa, coordenadora do CPJUS/UP.
Nos autos de prisões estudados que continham essa informação, dentre a totalidade de presas, a média de cada mãe, à época da prisão, era de dois filhos, sendo que 19% tinham apenas um filho, 21% tinham dois filhos, 17% possuíam três e 6% tinham a prole constituída por cinco ou mais. Sobre a faixa etária, 34% possuem filhos de até 6 anos, 28% com filhos de até 12 anos incompletos, 15% com até um ano incompleto, 7% foram presas ainda gestantes e 16% com filhos entre 13 e 18 anos. Ainda, em 60% dos processos, não há informações sobre quem eram os principais responsáveis pelos filhos, antes ou após o aprisionamento. “É como se o Estado não olhasse para essa criança, eximindo-se de prover os cuidados mínimos, como designar um responsável para olhar por esse menor, uma vez que essas informações não estão no processo”, avalia.
Embora a maternidade seja circunstância que autoriza a prisão domiciliar desde o ano de 2016, a pesquisa constatou que, em quase metade dos processos, não há pedido de liberdade provisória ou prisão domiciliar e, entre eles, apenas 66% mobilizaram o argumento da maternidade. Em 52% dos casos, a liberdade provisória foi concedida, sendo que entre eles, em mais de dois terços o juiz sequer mencionou a presença de filhos ou da gestação e apenas 12% dos pedidos de prisão domiciliar foram deferidos. A conclusão é que, apesar dos esforços legislativos e da decisão proferida no Habeas Corpus Coletivo, a ausência de informações e a baixa mobilização da maternidade e da gestação no curso do processo judicial têm atuado como obstáculos ao exercício de direitos às mães presas.
Penalizadas pelo gênero
Dos dados existentes foi possível traçar que o perfil socioeconômico destas mulheres, em sua maioria, são jovens, com ensino fundamental incompleto. Quase metade delas são brancas e, entre aquelas para as quais havia essa informação, tinham, em média, dois filhos e renda de até dois salários mínimos.
Sobre as circunstâncias do crime e da apreensão, quase metade das mulheres foram presas em razão de crimes relacionados ao tráfico, com quantidade de droga muito baixa. Contudo, as penas aplicadas são, em sua maioria, superiores a 4 anos, e o regime inicial fechado. A pesquisa revelou, ainda, que em quase 80% dos casos a prisão se deu em flagrante e sem a realização de diligências posteriores em 45% dos casos, o que pode sugerir que são mulheres que atuam como pequenas traficantes. Apesar disso, em apenas 25% dos casos houve a tipificação pelo tráfico privilegiado. Outro indicador de disfuncionalidade do sistema é a ausência da realização da audiência de custódia em quase metade dos casos (47%). A audiência é um ato do Direito Processual Penal em que o acusado por um crime, preso em flagrante, tem direito a ser ouvido por um juiz, de forma a que este avalie eventuais ilegalidades em sua prisão.
Olívia explica que as implicações dessa carência de informações são várias. “O Estado não saber quem é aquela mulher que está encarcerada é tornar aquela pessoa apenas um número e não utilizar a fonte tão importante que é um processo para identificar quem são aquelas pessoas e, a partir desse dado, poder trabalhar em ações de políticas públicas para que tenham um impacto na vida daquela mulher encarcerada. Saber qual é a ocupação dessa mulher para dar uma alternativa financeira que não seja o crime”, defende. A pesquisa mostra que, para 80% das mulheres, não há dados sobre a ocupação – e não constam informações sobre a renda de 85% delas. “É olhar para a pessoa em um aspecto normativo de aplicação da lei, sem entender o contexto socioeconômico em que ela está inserida. Sem essas informações, o Estado não consegue desenhar ações efetivas”, avalia.
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