A DEMOCRACIA QUE NOS FALTA, por João Luís S. Almeida
A DEMOCRACIA QUE NOS FALTA
– “Se cada morador da cidade pegar um latão de areia do lago do Cavalinho Branco, não faltará água nas torneiras no ano que vem”.
Há quem diga que a frase partiu de uma autoridade municipal em momento de forte pressão. Se a frase fosse dita na antiga Grécia de Péricles seria entendida como uma convocação aos cidadãos plenos numa ação em prol da democracia direta e participativa, porém o sistema democrático em que vivemos é outro: cada cidadão maior de 16 anos pode escolher quem será seu representante na esfera pública a cada quatro anos.
É a lógica de uma democracia representativa, que impõe o interesse coletivo sobre o individual, por parte dos que recebem o dever de governar e legislar.
Digamos que aqui foram mais de onze cidadãos validados à escolherem qual e quem, em 2020 seriam eleitos como prefeito, vice prefeito e os nove vereadores, totalizando onze mil pessoas que passam a representar os desejos e necessidades das quase vinte mil pessoas no ambiente coletivo.
Então, pelas vias democráticas vigentes, já temos quem deve executar a retirada das latas de lodo do lago do Cavalinho Branco para gerar o desassoreamento: são as onze mil pessoas, em incontáveis carregamentos de areia, lata a lata.
Mas os edis, o prefeito e seu vice tem mais o que fazer do que carregar latas e latas de barro do lago. Essa é a ideia corrente na democracia representativa do Estado de Direito e o que certamente dirão os interessados na labuta.
– VOZES QUE AI ESTÃO
Há um estudo acadêmico da Universidade Federal de Alfenas – MG (ICSA/UNIFAL) de 2020, na disciplina Território & Espaço Público, numa iniciativa intelectual da administradora pública graduada Iris Carmem Pinheiro Rodrigues, que ouviu vozes aleatórias de entrevistados de diferentes faixas etárias, do centro e dos bairros, sobre a crise hídrica prolongada de Águas de Lindoia SP.
O título do estudo “ CONFLITOS URBANOS : DIFERENTES PERSPECTIVAS retrata cinco interpretações distintas sobre o assunto:
- uma de que o problema era falta de planejamento,
- outra de que existe privatização da água por aqueles que fazem construções indevidas,
- mais uma sobre para quem é o racionamento e em quais proporções ele ocorre (se para todos ou somente para os bairros afastados do centro da cidade e do comércio),
- outra versão sobre falta de consumo consciente ou então,
- a versão final de que era porque havia desmatamento em áreas próximas às nascentes.
Enfim, várias perspectivas para um mesmo problema, com visões diferentes de causas e consequências.
– OUVIR AS VOZES
Ao ler o estudo, chamou minha atenção que se temos cinco versões entre dez entrevistados, algo de muito errado está permeando as percepções das pessoas na nossa coletividade. Existem injustiças, desvios, dores e perdas que não há quem as enxergue.
Os diagnósticos e as soluções divergentes pelas pessoas ouvidas evocam caminhos que o poder público deveria conhecer e, na medida do possível, unificar soluções dos conflitos, pois as políticas públicas devem utilizar os recursos escassos e se concentrar nas principais linhas para dirimir estes conflitos, visando a atender aos anseios da maioria da população.
Dai ser essencial saber quais são as principais linhas de ação. Decidir sem assumir a existência de conflitos é um viés que pode derivar em decisões totalmente errôneas.
Ouvir a população, informar a verdade, esclarecer suas dúvidas, reduzir conflitos e trabalhar ostensivamente para o bem estar social, com respeito à diversidade, à equidade e à inclusão social, é este o moderno conceito da democracia que nos falta.
– O LIBERALISMO
Como já disse, os onze representantes tem mais o que fazer, então eis que surge a figura do empreiteiro para oferecer seus serviços e o seu “ Know How” no desassoreamento do lago, não aquilo que precisa ser feito , mas o que se pode fazer com seus homens e máquinas para ter e manter serviços permanentes e lucrativos.
Pede e consegue três milhões e quinhentos mil reais para aprofundar dois metros do lago, num repasse de verbas públicas estaduais, com contrapartida de parcela de recursos oriunda de cofres públicos municipais.
– A CONVENIÊNCIA
Como não é o melhor a se fazer, mas pode ser o mais fácil a ser feito, o problema está solucionado pelo grupo dos onze, por um ou dois anos. Depois, todo lodo enche novamente o lago e o problema se renova.
Se tivesse feito o certo, o afundamento de quatro a cinco metros, em média, acompanhado da recuperação ambiental dos arredores das nascentes, a obra seria oportuna.
– A MÁQUINA ESTATAL
É no ambiente democrático que as vozes críticas ressoam melhor. Virão novas cobranças do porquê da água escassa nas residências e do pouco que foi extraído da lama que atola o reservatório, dois anos depois e milhões de reais mais pobre, os cofres públicos.
No racionamento, voltarão às birras sobre o dever de cuidar da retirada da areia, entre as 20 mil pessoas e os 11 representantes. Quem vai limpar de esse lago do jeito certo ?
As discussões do assunto chegarão na ideia de aquisição da máquina certa para o serviço ser permanente e feito por servidores da Prefeitura ou do SAAE.
Uma escavadeira Poclain /Case ou Hyundai pode fazer melhor este trabalho e aprofundar o lago, não em dois metros, mas em quatro na media ou até quatorze metros na comporta.
Outras vozes dirão que uma draga embarcada ou motobomba Yanmar, instalada nas margens, fará até melhor trabalho de extração de areia e lodo, sem impactos na linda urbanização do entorno.
A força da democracia traz as vozes silenciadas com o vigor de um “rasgo de trombone”.
– A VOZ DO AUTORITARISMO
Por essas e outras, a democracia está em crise no Brasil, agora que nossos representantes interpretam como acham que devem conhecer a história e que parte barulhenta da população subverte o entendimento dos ritos democráticos ao qual todos se submeteram.
Disso tudo, temos que o lago que já armazenou cem mil metros cúbicos de água para produzir até 40 litros por hora de água bruta para tratamento na ETA há 450 metros dali, está moribundo.
Apenas onze pessoas na cidade decidirão como salvá-lo, legitimados por uma eleição democrática recente. Portanto, tem o direito e a obrigação de decidir, sempre agindo na legalidade, com o dever de ouvir a população e de afastar as formas veladas de autoritarismo que assombram a democracia em que vivemos.
A democracia só floresce quando se ouvem todas as vozes, ou ao menos, da maioria da população. A democracia tem a obrigação de esclarecer a minoria dissonante e a tentar convencê-la a aceitar o resultado, seja qual for. Nunca o contrário.
JOAO LUIS DE SOUZA ALMEIDA é administrador e ambientalilista
Veja também:
https://www.tribunadasaguas.com.br/2021/10/08/dezessete-ribeirao-da-agua-quente-2021-hoje/