Sicut Transit Gloria Mundo
Depois da merecida aposentadoria, passou a frequentar nossa “Calçada da Amizade” nas manhãs de domingo.
Com voz calma e educada perguntava ao introduzir um assunto: – “Posso dizer uma coisa?”.
Não tinha segredos, falava abertamente de sua vida presente, passada e dos projetos futuros. Falava com naturalidade de seus amores, das novas amizades cibernéticas e com muito amor, carinho e orgulho de seu casal de filhos.
Jovem, trabalhou por alguns anos no Hospital Psiquiátrico de Juqueri, em Franco da Rocha (SP), onde morava. Essa experiência, num ambiente sofrido, amadureceu o adolescente batalhador, que, na Lapa, em São Paulo, fez o curso de cabeleireiro. Casou com uma mulher batalhadora como ele, aqui dos contrafortes da Mantiqueira, e pra cá se abalaram.
Antigamente tínhamos os barbeiros – Zé Biscuola, Décio Biscuola, Darci Biscuola, Romeu Nicoletti, Toninho Barbeiro, Chiquinho Barbeiro. Então chegou BALTHAMAIR, talvez o único do mundo com esse nome, o NUNES com seu salão unissex. Atendia homens e mulheres e em pouco tempo angariou uma legião de clientes.
Incentivou e respeitou as manicures que com ele trabalharam, a mais longeva foi a Ceminha. Seus clientes fiéis só cortavam ou penteavam os cabelos com ele. Tornaram-se todos amigos de Nunes. Na calçada em frente ao salão instalou um banco de cimento, onde, nas poucas horas vagas papeava com os passantes a caminho do Banco do Brasil e dos Correios, que ali se inteiravam das ultimas acontecências, sem fofocas ou fake News.
Com o suor do rosto e a ajuda da companheira, Nunes conseguiu comprar o prédio do salão e construir uma boa casa na Nova Lindóia.
Ao atravessar a Rua Argentina, perto do posto, teve o pé amassado por um ônibus da Fênix. Perdeu os dedos. Entrou na justiça, que muitas vezes é justa, e ganhou uma indenização polpuda da empresa de um influente deputado. Demorou bastante, mas abiscoitou uma boa grana que lhe deu uma aposentadoria confortável.
Ultimamente viajava bastante e no Peru, ficou mais de um mês na casa de uma amiga internética, talqualmente no Norte de Minas e em Santa Catarina. No domingo passado conversamos longamente na nossa calçada. Como o filho não vinha busca-lo, Rubem Jardim sugeriu: vamos almoçar em Monte Alegre, no tradicional restaurante Tedeschi, especializado em leitão pururuca. E fomos Rubem, Balthamair e eu. Duas horas de convívio amistoso e saudável. Quem poderia prever que era a nossa despedida. Nunes não era glutão, comeu pouco, ficou mais na sobremesa.
Na ida e na volta conversamos muito e ele nos informou eufórico que no dia seguinte, com o filho ia a Guarulhos buscar a amiga peruana que lhe retribuiria a visita e, na terça sairiam em excursão pra Cabo Frio. Estava feliz da vida.
Contou-nos também que, com o filho, tinha ido a Campinas escolher um Citroen zero, com o desconto de que disfrutam os deficientes. Até brincamos com ele: – Esse pé amassado deu-lhe um bom lucro!
Esse foi nosso último encontro com o petista amado e respeitado por todas as facções, aos 67 anos, deixa muita saudade para a legião de amigos que angariou.
Todos queremos ir pro céu, mas ninguém quer morrer.
É nessas ocasiões que constatamos quão verdadeiro é o aviso da Igreja na Quarta Feira de Cinzas: “Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris.”
* Ismael Rielli, Águas de Lindoia. É professor aposentado, jornalista, escritor e ex-vereador. Tem atualmente um ponto de cultura no Sebo do Ismael, em Águas de Lindoia.
* colaboração de Rodrigo Martins na digitação e revisão de “Sicut Transit Gloria Mundo (homenagem ao Nunes)”
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